Mundo kafkaniano

A mesa do escritório estava cheia de papéis, livros e pó por limpar. Num dos cantos, junto ao candeeiro, eles estavam em pilha à espera de serem lidos e dissecados. Sim, os malditos testes! Nunca me habituara à ideia de terminar um ano lectivo carimbando os alunos com um número. Peguei na esferográfica verde e comecei a penosa tarefa. De repente, entrei em transe! Num deles, alguém escrevera sobre os povos desconhecidos da época dos Descobrimentos:
 “Antigamente, as pessoas andavam sem cabeça e as que a tinham, normalmente, andavam com ela debaixo do braço.” Li novamente, não havia dúvida! A resposta parecia saída de um filme de terror! Recostei-me na cadeira para aliviar a massa cinzenta. Estes rasgos de criatividade kafkanianadeixavam-me extasiada e boquiaberta, por vezes, havia momentos que sentia frustração, como se o mundo me caísse ou me devorasse.
Abri a porta e saí de rompante para aclarar ideias e afastar o calor que crescia nas entranhas. A cabeça, essa, apeteceu-me desatarraxá-la e deixá-la ali! Subi as escadas para o piso superior num passo lento e arrastado.
Sentada à lareira, a minha mãe via o tempo escorrer-lhe das mãos. Os braços balançavam por entre as pernas e a cabeça tombava, enquanto as lágrimas caíam no chão frio da sala. Largou um suspiro e assim ficou, tal e qual uma estátua imóvel e impenetrável, absorta em mundos alheios e complexos como as fórmulas matemáticas ou os raciocínios de Nietzsche. Era assim, havia já dois anos, desde que o meu pai perdera, também ele, a cabeça e saíra de casa sem deixar rasto. Lugar-comum, foi comprar cigarros e esqueceu-se de voltar… Amor confundia-se com obsessão e acabar com a vida assemelhava-se a um prelúdio de rejuvenescimento que ela desejava ardentemente alcançar.
O meu irmão entrava e saía de casa, apenas largando um bom dia ou um boa noite, indiferente à dor, à consternação, à violência emocional... Naquela casa, meio abandonada e submersa num caos insipiente, eu sentia o fardo da liderança.
Encostei a porta e, antes de deixar aminha mãe acompanhada dos seus fantasmas, dei-lhe um abraço apertado e comovido sem qualquer palavra. Passei pelo quarto do meu irmão, que acabara de fechar delicadamente a porta para se entregar ao seu pequeno grande universo desconhecido e ambíguo, e fui até ao meu. Quantas vezes, também sinto necessidade de colocar a cabeça debaixo do braço ou levá-la ao colo, para que possa aliviar deste mundo. Renascer, seria a palavra indicada! Renascer!
Deitei o corpo com vontade na cama limpa, feita com os lençóis brancos de linho, e a cabeça ficou a ver aquele espectáculo. Sim, ela não quis entrar! Deixou-se ficar do lado de fora da porta a desejar que amanhã fosse diferente de hoje.

Sónia Chainho In Pensamentos

"Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man", by Salvador Dali

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